Muitos dos meus leitores me conhecem pessoalmente, mas para quem não me conhece, saiba que eu sou Biólogo e Farmacêutico. São campos muito próximos na verdade e, para ser sincero, mesmo depois de acabar o curso de farmácia, na minha cabeça, eu sou apenas um biólogo com um conhecimento a mais de bioquímica/saúde. No entanto, há um assunto que une as duas áreas em escalas distintas e que muito me interessa: drogas.

folha de cannabis
Dos armários sufocados de alguns para uma produção industrial. Clique para a fonte

Ao contrário do que possam pensar, não uso nenhuma. Sequ sequer sei dizer qual foi a última vez que bebi álcool, mas tenho uma atração acadêmica pelo assunto desde a produção até os efeitos psicoativos e possibilidades para saúde humana. É literalmente uma pena que haja tantas barreiras para se estudar substâncias psicoativas, especialmente as que já demonstraram pouquíssimo custo social para sua liberação, como as presentes na Cannabis.

Cannabis, Maconha, Erva de Preto, Erva do Diabo, Hemp, Ganja, 4:20, o nome não importa, você sabe o que é, mas talvez você não tenha ideia do que há em torno dessa planta e termos econômicos e sociais que estamos deixando de ganhar em razão de uma proibição que não se justifica sob diversos aspectos.

Até 1938 havia até apoio oficial para plantio e produção. Clique para a fonte

Cannabis, ou qualquer um dos nomes acima, na realidade não é uma planta só, é um grupo delas. Embora haja discussão sobre como realmente esse grupo se divide, existe razoável consenso de que há 3 espécies: Sativa, Indica e Ruderalis, sendo a sua origem em alguma região entre a parte sul e central da Ásia (entre a Índia e o Cazaquistão) e, curiosamente, é parente próximo do Lúpulo. Seu uso recreativo, ritualístico, medicinal e das suas fibras é datado de 3 milênios antes de Cristo e sua proibição em massa na maioria dos países a partir de 1971 com o início da chamada guerra às drogas.

Gráfico comparativo de diversas drogas em relação aos seus danos sociais, físicos e relativos à dependência. Clique para a fonte

Este texto não se destina a explicar como a cannabis age no organismo, potenciais riscos, adição e afins (sobre isso você pode ler com muita qualidade aquie aqui). Na verdade, tomamos como fato o já demonstrado risco muito pequeno em relação a muitas substâncias, legais inclusive. Algo plenamente manejável em termos de sociedade e que, não fosse a proibição, poderíamos estar colhendo muitos benefícios a partir da exploração dessa planta. É sobre esses benefícios, com foco econômico/financeiro, que vamos falar um pouco.

A indústria

O que se chama hoje de Indústria da maconha é na verdade uma série de coisas diferentes que o olhar desatento encararia apenas como cannabis para fins recreacionais. Embora esta também esteja incluída e seja a ponta de lança do ativismo mais energético pela regulamentação/liberação, a indústria da cannabis incluiria a extração de compostos específicos, modificação desses compostos para novos fármacos com novas propriedades, extração e beneficiamento de óleos essenciais, fibras e, por que não, ornamental paisagística. Isso inclui em grande parte a indústria alimentícia, têxtil e químico/farmacêutica.

Medir o quanto isso representa no Brasil em termos de dinheiro, empregos e afins é bastante difícil, haja vista que a maioria do mercado ainda é ilegal e o que se tem até agora é muito inicial, havendo presumivelmente uma demanda suprimida bastante grande, então tome os números aqui com uma pitada de sal. No entanto, ainda que sirvam para avaliar de maneira grosseira, a ordem de grandeza (de milhões a bilhões de dólares) não é algo que deixe de gerar atenção nem a investidores nem ao governo.

Em 2017, tinha-se a projeção de que o valor combinado das empresas norte-americanas lidando com esse mercado girava em torno de 31 bilhões de dólares (algo em torno de 120 bilhões de reais hoje) e uma movimentação de mais ou menos 8 bilhões de dólares (32 bilhões de reais) só em 2018, combinando estados cuja legalização é apenas para fins medicinais e outros que incluem fins recreativos. Para se ter ideia, isso representa mais ou menos 10% do valor exportado pelo nosso agronegócio: uma única planta ainda de consumo restrito em vários estados americanos, em apenas um país pouco tempo depois que começou a ser explorada comercialmente de maneira legal, está movimentando anualmente o que corresponde a 10% de nossa maior força econômica, utilizando, provavelmente, uma área de cultivo muito menor que 10% do que utilizamos para soja/milho. Em termos de empregos, estima-se que tenham sido criados entre 125.000 e 160.000 empregos associados diretamente, podendo chegar a mais de 300.000 em 2022.

Existe, portanto, uma oportunidade econômica claramente demonstrada.

E o Brasil? Ele poderia produzir e se beneficiar disso?

Da produção

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Quanto à produção, é até redundante falar sobre o nosso potencial. A planta depende de temperaturas entre 24 e 30 graus para crescer de maneira ótima, suportando alguma variação acima e abaixo disso às custas da produção de alguns compostos de interesse médico, e solos levemente ácidos, que basicamente é o pH necessário para a maioria das plantas que já produzimos.

Além disso, nós temos a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), responsável pela adaptação de diversas culturas às nossas possibilidades de cultivo. Se hoje temos plantas de soja que suportam praticamente todos os climas de nossos biomas, deve-se ao trabalho dessa empresa. Ela possui, portanto, total capacidade de dar suporte a essa cultura em solo nacional.

Temos absolutamente tudo para operar a produção em nível de commodity: uma vasta quantidade de terra já em uso, expertise de plantio em larga escala, clima apropriado, cadeia de distribuição e know-how. Além disso, sendo uma planta de alto valor agregado e cujo consumidor aprecia a qualidade em diferentes níveis, tal como vinho, café ou chocolate, há espaço para que pequenos produtores possam se beneficiar e extrair renda de um produto que absolutamente remunera a diferenciação e exclusividade.

Da saúde

Sob o ponto de vista médico, apegando-se ao que já se tem como conhecimento consolidado e fugindo de crendices que permeiam o ativismo, há o notável potencial do CBD (Cannabidiol, um dos compostos ativos das plantas do grupo da Cannabis) para o tratamento da chamada epilepsia refratária. Estima-se que o Brasil tenha cerca de 60.000 casos de epilepsias refratárias, aquelas de difícil controle que não respondem aos tratamentos usuais. É uma situação clínica que pode levar os pacientes a terem dezenas de crises epilépticas em um curto espaço de tempo, deteriorando sua condição física e mental a níveis bastante degradantes.

Fármaco a base de CBD recentemente aprovado pelo FDA (Departamente semelhante à nossa ANVISA). Clique para fonte

Já há tratamentos disponíveis para estes casos utilizando-se medicamento à base de CBD e recentemente foi autorizada a importação de medicamentos desse tipo por meio da Anvisa. No entanto, a falta de uma indústria nacional faz com que os custos associados, bem como a dificuldade logística, sejam altos demais para a maioria dos pacientes. Um problema legal que gera um labirinto burocrático e ideológico, desaguando por fim em um custo humano muito palpável.

Há, inclusive, pesquisas brasileiras que originaram patentes de compostos derivados de CBD.

Do retorno estimado

Levando-se em conta apenas o uso recreativo, sem olharmos para as demais indústrias acopladas à cultura, apenas ao mercado nacional e sem contar nosso potencial já instalado no agronegócio para produção e exportação, estima-se que poderíamos ter uma arrecadação tributária de 6 bilhões de reais por ano. Para se ter uma ideia, a USP, responsável por 20% da produção científica do nosso país, quase 100.000 alunos e 6000 professores, recebeu em 2018 em torno de 5 bilhões de reais para funcionar. Fazendo uma comparação grosseira, mas ainda assim válida, os usuários de maconha poderiam dar mais dinheiro para a ciência do que o governo hoje o faz.

Foto por NickWinslow [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0) or GFDL (http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html)], from Wikimedia Commons.

Ainda, além da indústria recreativa e farmacêutica, o agronegócio relacionado à indústria têxtil poderia se beneficiar. A fibra da maconha pode substituir, em algumas aplicações, o algodão, uma das culturas mais difíceis e com maior uso de defensivos em razão do bicudo do algodoeiro, uma praga exclusiva ao algodão e muito resistente ao controle químico.

Por fim, levando-se em conta toda a cadeia de produção e beneficiamento dos derivados, há um movimento considerável da economia muito maior do que o equivalente à exportação de grãos.

Da gestão pública

Os gastos do sistema prisional relacionados apenas a pessoas detidas em razão de tráfico estavam em torno de R$ 3,32 bilhões em 2014, o que pode ser somado a 400 milhões de reais associados aos gastos com repressão policial relacionados ao combate às drogas e 260 milhões dos gastos jurídico-processuais com crimes de posse e tráfico de drogas. Não se pode dizer que essa despesa desapareceria com a regulamentação da cannabis no Brasil, haja vista que há outras drogas no mercado e que o crime organizado poderia buscar ativamente outras fontes de renda, no entanto, espera-se que esse mesmo recurso possa ser gasto de maneira mais inteligente caso a pressão sobre a guerra às drogas diminua.

Quais as possibilidades de aproveitarmos essas oportunidades?

Sendo bastante diretos, no curto prazo: nulas. Entramos em uma administração cujo mote contraditório é ser técnica e pragmática, o que poderia facilitar essa questão, no entanto abarca um quadro ideológico consagrado por observar a questão da cannabis e das demais drogas de maneira estritamente policial tal qual Richard Nixon.

No entanto, há motivo para ser otimista se analisarmos o quadro geral da legalidade da Cannabis no mundo, com recentes legalizações para todos os usos no Uruguai e para uso médico no Peru na América Latina. No Brasil, apesar de não ser a maioria, muitos deputados já possuem posicionamento definido a favor da liberação e, embora estejamos entrando em um ciclo conservador, é esperada uma reação política em termos da liberação em um próximo momento, ainda que esse momento se dê em termos de uma ou duas décadas.


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